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segunda-feira, 2 de abril de 2012

BACANAL

Corria 1964. Era março. Principiozinho do mês, um ou dois no calendário, parti de Teresina, por terra, no rumo do Rio de Janeiro. Viagem de bom recreio. Da viagem participava José Fernandes do Rego, meu primo, brilhante jornalista, e uns três amigos dele. Primeiro Fortaleza, onde se abasteceu o carro do necessário, desde a gasolina a bebedoria e comedoria. A dormida dava-se debaixo das árvores frondosas, com riacho por perto. Redes boas de descanso. Percurso longo, por estradas ainda sem asfalto. Em Campina Grande, café e uns beijuzinhos de côco ralado por cima. Cuzcuz e muita manteiga sertaneja. Depois, João Pessoa e Recife, no primeiro governo Miguel Arrais. Prosseguiu-se até Penedo, nas Alagoas, lugar de muita gente doente, boa feira de artesanatos, restaurantes de panelada e mocotó de vaca. Travessia do São Francisco, em pontão. Aracaju em seguida, bonitinha, dengosa, noitada alegre na praça grandona. Perto o palácio do governador da época, depois deposto, Seixas Dória. Agora Salvador, de ruas velhas, ladeirentas, comida apimentada que dava para soprar os peitos. Daí para frente, pela asfaltada Rio-Bahia, chegou-se à segunda capital brasileira, a cidade dita maravilhosa, que eu já conhecia como a palma da minha mão.

Hospedei-me com o primo José Rego, no seu apartamento da rua das Laranjeiras, visitado por gente famosa do tipo de Oscar Niemeyer, Raul Riff, por alguns comunistas de prestígio e figuras outras do governo comunistas de prestígio e figuras outras do governo João Goulart. Estive no comício do dia 13 de março, misturado com o poviléu entusiasmado e faminto. O presidente, ao lado da esposa, incentivava os aplausos com promessas de melhorar a vida do pobre. Pelas onze da noite, cansado, retornei à minha hospedagem.

Dia seguinte, José Rego me fazia convite para uma festa de aniversário no apartamento de amiguinha sua, no bairro do Flamengo. Cada convidado devia comparecer com o presente de comida ou bebida. A festa teria inicio às 11 da manhã.

De mim, não conhecia praticamente pessoa alguma. Muitos rapazes e moças, sentados, em palestrações alegres e por vezes gargalhantes. Consumia-se boa quantidade de álcool. Pastel em quantidade. Pelas duas da tarde, vi chegar uma garota do Piauí, filha adotiva de falecido magistrado, minha antiga aluna no velho Liceu.

Iniciaram-se as danças pelas 15 horas. Os pares, homens e mulheres, bêbedos, dançavam como se estivessem numa cama de casal. Houve um grito de comando, alto, para que todos tirassem a parte de cima das vestes. Todos nus da cintura para cima. Seios saltavam. Orgia sexual em que garotas e coroas se entregavam despudoradamente. Cenas de invulgar erotismo. Pouco depois, todos pelados machos e fêmeas.

Num canto, em mesa discreta, fiquei ao lado de José Rêgo, dois rapazes e duas moças, conversando e espiando o gratuito espetáculo. Chamei minha ex-aluna, inteligente, baixinha, mas bonita. Veio até mim, puxou cadeira, sentou-se, começou a chorar. Gostava de cocaína. Julgava-se desgraçada, infeliz, prostituta, ordinária. Dei-lhe alguns conselhos que ela recusou, considerando-se perdida.

Era o começo das bacanais de luxúria, bacanais de depravamento, como as de Roma na antiguidade, promovidas pelos Neros e Calígulas, tipos integralmente degenerados.

Quatro anos mais tarde, em 1968, em Paris, a juventude decretava a rebelião total contra os restos de beleza de uma sociedade hipócrita mas que pelo menos viveu inesquecíveis momentos de alegria.

A. Tito Filho, 29-30/03/1992, Jornal O Dia

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