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segunda-feira, 2 de abril de 2012

OS HUMILDES

Na Academia Piauiense de Letras possuo o meu voto. Nunca pedi que os colegas acadêmicos me concedessem o voto que lhes pertence para a eleição de candidato de minhas simpatias, pois se assim fosse Possidônio Queiroz já estaria sentado numa poltrona da Casa de Lucídio Freitas, por incontestável merecimento. Humilde, simples, bondoso, amigo leal, sincero, correto nas atitudes, tem memória privilegiada, conhecimento profundo da história do Piauí e de sua antiga capital, Oeiras, riquíssima de tradições, e de grandezas cívicas. Possidônio e Oeiras se confundem fraternos, amada e amante de amor eterno. Raros no Piauí escrevem como Possidônio, linguagem escorreita, na usança do português popular ou da língua clássica quando quer, e num ou noutro tem o respeito dos mestres como ele.

Gosto de Possidônio, consultório da gente de Oeiras. Venero-o. Colocou a cultura piauiense a serviço dos sentimentos de sua pátria maior, Oeiras, cuja glória abastece o Piauí sem memória e Teresina mutilada de ambições nefastas.

Casualmente folheio um jornalzinho antigo de Oeiras e nele deparo com um trabalho de Possidônio, uma crônica, gênero difícil, que ele domina facilmente. Homenagei-o transcrevendo-a. Leiam-na. Curiosa, concepção pular, como tudo que presta, intitulada O HOMEM QUE DAVA LEITE:

"Parece que ainda estou a ver. Estatura mediana, gordo, por isso mesmo parecendo mais baixo, xingador, amante da boa pinga, palavroso, quase valente, festeiro, vaqueiro hábil e corajoso, autoritário no meio onde morava; eis, em rápidas pinceladas, o retrato do nosso herói, - Raimundo José de Figueiredo, ou, simplesmente, Raimundo Figueiredo, como era tratado.

Há quarenta anos atrás, todo mundo o conhecia em Oeiras. Residente no interior do município, no lugar Malhada Real, há poucas léguas da sede, vinha constantemente à cidade. Aqui privava com as pessoas mais categorizadas. Muitos gostavam de ouvi-lo, porque a conversa entremeada de palavras menos doce, de constantes invocações ao Diabo e de pilhérias salgadas, despertavam gargalhadas estrepitosas.

Raimundo Figueiredo nunca vinha à cidade sem palitó. A camisa, porém, lhe aparecia por baixo do palitó, na frente e atrás, porque a trazia sempre por fora das calças. Isto dava um aspecto bizarro.

Quando moço foi acometido de pertinaz moléstia, que, por pouco o não levou à sepultura. Permaneceu em estado de coma por vários dias. Restabelecido, contava, grave, sentencioso, que estivera no inferno e que lá muita gente conhecida, cujos nomes declinava. Desde então, tornou-se famigerado praguejador, vomitando injúrias, a cada momento.

O que vai dito bastava para a definição do homem, que veio do "outro mundo" sobremodo amigo do Tinhoso, amigo, de tal forma que não lhe podia nunca tirar o nome da boca. Entretanto, não é sob este aspecto, que lhe querem focalizar a personalidade. O que vamos dizer de Raimundo Figueiredo é que ele era um homem que dava leite, e dava muito leite.

Gostava de dizer, de afirmar essa faculdade que possuía, que de certa forma, o colocava acima dos outros homens, que não sabiam dar leite. E não admitia que ninguém lhe duvidasse da assertiva. A mais de uma pessoa, por duvidar do que ele dizia, sujou a cara e a roupa de leite. Era desacreditá-lo, e ele, num movimento rápido, sacava de sob as vestes um peito enorme, referto do liquido branco, e, sem mais demora, mandava contra o incrédulo um forte esguicho que o molhava todo.

Raimundo Figueiredo amamentou a mais de um filho. Não gostava de ouvir choro de criança. Por isso, quando a mulher saía para lavar roupa e a criança tinha fome, ele acalentava o filho pequeno, dando-lhe o peito a mamar. Daí, lhe adveio o criar leite, e muito leite. Cabra macho, não enjeitava contenda.

Genecomasto, na expressão da palavra, possuía mamas enormes. Nesse particular poucas mulheres lhe levavam a palma. Podia tirar, dos grandes peitos, sempre refetos, como costumava afirmar, copos de leite. Isso, eu o ouvi dizer mais de uma vez.

Gostava muito de sambar, de comandar as danças nos folguedos roceiros. Nas festas de casamento, nunca deixava de pronunciar discursos bombásticos, geralmente muito aplaudidos.


Era perdido por mulheres. Casado, tinha cinco ou seis filhos do matrimônio e vários de contrabando. Se fosse vivo estaria escandalizado por ver tantos homens operando-se no desejo de se transformarem em mulheres. Não fez nenhuma operação. E, no entanto, tinha seios enormes e amamentou crianças. Cousas da vida".


A. Tito Filho, 23/05/1992, Jornal O Dia

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