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segunda-feira, 2 de abril de 2012

SOBRE O CABELO

Um colégio no Rio e Janeiro não aceitou que um jovem de cocó freqüentasse as aulas, porque o regimento do educandário não permite e o moço, antes da matrícula, recebeu cópia das normas vigorantes. Houve protestos de cabeludos.

Faz anos sobre o assunto escrevi uma crônica concebida nos termos abaixo.

O fenômeno dos cabeludos é universal!

A juventude está usando cabelo crescido, cabelo grande. Não são poucos os rapazes cabeludos que desfilam nas ruas e nos clubes. Com eles se vêm preocupando intelectuais, estudiosos, jornalistas, psicólogos, psiquiatras, bem assim todas as camadas da sociedade. É justa a moda dos cabeludos? Devem os cabeludos gozar da aprovação geral, ou é condenável o processo dos cabelos que usam, cobrindo orelhas, cobrindo o cogote?

Do ponto-de-vista legal, ninguém lhes recusa o direito à moda que adotaram. Já o integro e culto Des. Fernando Lopes sobrinho atenta a eloqüência constitucional protetora dos jovens de cabelos grandes.

Os cabelos estão na história e na lenda dos humanos. Constituem material folclórico de subido valor. Houve tempo em que os cachinhos cortados de meninos e meninas eram usados pelos pais, encastoados em ouro, como berloques. A escritora francesa George Sand chegou a decepar a cabeleira e enviou-a a Musset, "como lembrança bárbara de sua dedicação sexual".

E as promessas de doação de rolo de cabelos aos santos? Refere Cascudo que essas promessas ainda são tradicionais no Brasil. A Cascudo também pertence esta informação: os cabelos valem material precioso para os processos de bruxaria. Os da cabeça enlouquecem ou matam. Os das partes pudendas anulam a virilidade.

Cabelo muito é atestado de masculinidade. Cabelo no peito indica valentia. De modo geral, os cabelos traduzem a força física, tradição filiada ao episódio de Sansão, com sua poderosa energia muscular, desaparecida no momento em que Dalila fez cortar a maçaroca do herói.

E a trunfa? Foi símbolo de coragem pessoal, como o cacho usado pelos homens do cangaço nordestino.

Meretriz, mariposa, horizontal, ou outro nome que tivesse a mulher de vida airada, durante muito tempo recebia a punição de ter o cabelo cortado, às vezes raspado. Conta Cascudo que houve antigamente a descalvação: descalvar era colocar a cabeça condenada em estado de calvície. Diz-se hoje mostrar a calva, quando se divulga crime escondido de alguém. Aplicava-se a descalvação aos crimes de felonia, falsidade e covardia.

Quem não se recorda das vaias dadas, nos colégios, aos alunos que apareciam de cabelo aparado? Ninguém esqueceu os versos do "Cabeça pelada. Urubu camarada".

No romantismo, a condição de poeta exigia uma basta cabeleira, à Castro Alves, como exigia tosse e pulmão fraco. Cabeludo e tuberculoso, eis o poeta romântico.

Por que os moços deixaram crescer os cabelos?

Seria o caso de perguntar também: por que praticam os jovens, crimes graves? Por que usam roupas berrantes? Por que dançam tomadas de frenesi, música quente, movimentadas, estonteante, provocante?

É que a mocidade está abandonada pelos pais, tomada de angústia, a angústia dos filhos injustamente apelidados de transviados, "quando eles só se transviam como uma reação contra a negligência, o amoralismo, o egoísmo dos pais, estes, sim, realmente transviados".

Que fazem as mães nos dias que correm? Entregam-se às atividades sociais, moram nos salões de beleza, passam as noites nos clubes de diversão ou nas salas elegantes de jogatina, sustentadas por tranqüilizantes.

Que deseja essa mocidade, frustrada, com os cabelos grandes, os trajes espalhafatosos, e bebida, a dança movimentada, o desenfreio? Protestar contra a sociedade que a abandonou, a principiar do abandono dos pais desafetuosos.

Leia-se a grande lição de um dos mais notáveis psiquiatras brasileiros: "Esses jovens procuram um meio de se fazerem personagens, com o objetivo de atrair sobre si a atenção dos pais e utilizam-se de toda sorte de estratagemas, dos mais simples e complexos aos mais condenáveis, da simples boemia vagabunda, como reação ao exemplo do pai que freqüenta bordéis, até às formas mais graves de transviamento moral, como reação contra a mãe que passeia de biquíni diante dos seus colegas de curso, ou se esquece de certas precauções à hora dos seus colóquios telefônicos adulterinos" - (Cláudio Araújo Lima - Imperialismo e Angústia).

Traje, cabelos grandes, música delirante - tudo simboliza protesto da mocidade contra o abandono em que a colocaram, abandono que gera a angústia dominadora da juventude.

Justifica-se o processo de rebeldia dos cabeludos. Esses cabeludos grandes, que dão cocó, têm uma causa. Muito bem. Mas são ridículos por dois motivos: oferecem uma idéia de pederastia e uma demonstração de falta de higiene. Convocam atenção para o ridículo. A música popular já ensinou que os cabeludos sugerem o desagradável:

"Olha a cabeleira do Zezé,
Será que ele é? Será que ele é"?

Demais disto, essas cabeleiras compridas criam uma expressão de esquisitice, de piolheira, de coisa comichona, sarnenta.

A mocidade pode ter razão de deixar crescer a cabeçola para atrair atenções. Mas a moda é feia e antipática. E já contagiou maduros e velhos, na ânsia da imitação. Maduros e velhos querem ser moços, pelo menos nos cabelos compridos.


A. Tito Filho, 05/05/1992, Jornal O Dia

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